20 de jun. de 2005

Caminho

Voltei pra casa chorando. Era vergonha, mal estar. Não poderia jamais ficar estagnado depois de ver aquilo tudo; estava certo de que faria alguma coisa.
O resto da noite foi tentar digerir os fatos e pensar em como muda-los.
Na manhã seguinte a cara de espanto era menor, mas não a indignação. Passei pé ante pé, tentando não fazer barulho, como se o horário comercial ao redor já não zumbisse o suficiente. Queria não incomodar, confiante na idéia de que dormir era a redenção, um passeio por outro mundo. Que tipo de sonhos?
Eu sonhava inquietudes.
Levei algumas roupas e distribuí umas moedas, animado por fazer tudo que estava ao meu alcance. E continuava arquitetando um plano maior.
Um dia mais e me distraí com a torre da igreja. Acabei tropeçando em um. Fiquei acabado, morto de vergonha. Como podia?! Não sou uma pedra!
Jamais vou contar isso pra alguém.
Ontem já os pulava com agilidade, numa corrida de estranhos obstáculos, admirado com minha destreza. Um, dois, cuidado com aquele. Giro para a esquerda, esquivada e cheguei.
Hoje, na correria do atraso, fiquei irritado em não poder andar em linha reta e nauseado com aquele cheiro que revira o estômago ainda vazio.
Amanhã eu me formo. Festa incrível. E eles continuam ali, emporcalhando a praça.

7 de jun. de 2005

Súdito

Antônio Abujamra não chorou quando nasceu. Queria provocar os médicos e dissociar-se do comum logo na aurora de sua carrancuda vida. E fez desse seu talento inato, a destreza para provocar com maestria, seu meio de vida. Foi um dos poucos entre seus tão ímpares pares profissionais que se sujeitou a televisão, grande referencial simbólico brasileiro. Com cara de avô ranzinza, que reclama de dores nas costas mas insiste em dormir no sofá, Abujamra capitaneia nos finais de domingo o Provocações, seu programa de entrevistas na TV Cultura.
O projeto inicial previa apenas treze entrevistas a serem exibidas durante três meses, mas para os que dizem que a qualidade na TV sempre sucumbe a bunda, agradou tanto que está há anos pondo sal em feridas abertas com a promessa de que ainda há muito cloreto de sódio no estoque.
Com ar de Tomás de Torquemada dissimulado, envolto por um cenário pálido, suportado pelo clima de Hitchcock e enquadramentos incertos, não amarra o entrevistado na fogueira, mas coloca fogo na vaidade. No programa quem triunfa é o provocado, que tem espaço e liberdade para expor idéias e responder a altura das perguntas, desde que apto a isso. Tem uma proposta que não é nova, mas é perpetuamente boa. Repelente do discurso em voga.
Da trinca de gordos que despontam no comando de talk-shows no Brasil, as diferenças entre eles salientam mais que a barriga. A irreverência de João Gordo, que prima pelo escracho sem distar da inteligência e o vazio narcisista de Jô Soares, o condutor da massa, que é graduado em auto-afirmação e projeção do quanto sabe, Abujamra segue outra trilha. e mostra sua periclitante diferença genial.
Provocações dá total liberdade para os entrevistados, sejam eles quem forem, de onde forem, com o título que tiverem. Como um "grande circo místico", provê os prometidos 15 minutos de Warhol para representantes de minorias, artistas, médicos, fãs do programa e muitos outros tipos, como mendigos, que já tiveram sua vez e espaço para se expressarem e não raro surpreendem-nos com sua provocações, dando sutis alfinetadas em nosso preconceito. Todos podem enforcar-se na corda da liberdade com nó apertado pelas mãos de Antônio. E, para entreter além dos bate-papos, textos declamados com maestria e reportagens diversas sobre os mais variados e curiosos temas.
Expoente estranhamente mendicante e glorioso desse gênero jornalístico, comandado por um niilista auto-crítico, ácido e lancinante o programa de pouca verba triunfa pela muita inteligência e pelo desconforto que não raro causa no espectador. Torna astuta e incômoda nossa macilenta televisão e provoca as (de)cadentes estrelas de nossos triviais programas de entrevistas.

2 de jun. de 2005

Por uma causa nobre

Essa é velha e já estava no outro Água, mas sempre rememoro:

Há tempos que anoto várias coisas que leio nas portas de banheiros, nos bancos de ônibus e que escuto pelas calçadas da vida. Qualquer coisa que me desperte a atenção, telefonemas estranhos, seja lá o que for. Frases captadas, impressões escritas, protestos, opiniões e diálogos do dia-a-dia.
Aqui vai um, tragicamente hilário em seu propósito:

Era uma conferência entre pessoas HIV positivo e pessoas com Parkinson. Discutiam como angariar, em conjunto, verbas para suas causas e quais as estratégias de uma campanha antipreconceito que lançariam. Até que, após algumas divergências, um senhor negro, soropositivo, lançou:

- Ah, Parkinson é doença de rico! De quem não tem o que fazer.

O idoso com Parkinson para quem a frase foi desferida retrucou, a altura:

- Olha, eu não escolhi essa doença que eu tenho. Vocês sim é que foram atrás da sua! Atráaaasss...
- E quem é que tem Parkinson e não tem dinheiro?? Olha só o Papa, leva um vidão.
- Como assim? Vidão?? E eu tenho a doença e não sou rico, muito pelo contrário! Seu viado!
- Olha, seu velho britadeira, eu te meto a mão na cara!
- Então desce da tamanca e vem! Rogélia!
- Com essa mão tremendo, o senhor serve mais pra safadezas que pra briga!

E a conversa seguiu nesse patamar até que alguém, já satisfeito com o espetáculo, pôs fim a troca de palavras de conforto. Clima estranho, a reunião acabou logo. Sem um veredicto final. Aguardemos a próxima.

E assim caminhamos. É só achar uma brecha, que vamos logo cuspindo impropérios. Salve o preconceito velado...