14 de ago. de 2014

De graça

- Acho que me identifico. E você?
- To parado desde a hora que li. Sempre penso nisso, o quanto o humor não é só barricada. No fundo, queria que alguém transpusesse e me tomasse de assalto.
- Mas, não, serve só pra mascarar a doideira que a gente é por dentro e projetar uma alegria amistosa, que não gere questionamentos.
- Como é bom encontrar doidos iguais. Rs

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"De fato a capacidade de juntar elementos distintos é uma característica da criatividade, mas também das psicoses. Já a habilidade de fazê-lo de forma surpreendente e rápida é central para o humor, mas surge igualmente nos episódios maníacos. Sendo assim, o dom de criar piadas parece ser mais fácil para as pessoas que vivem perigosamente próximas tanto da psicose como dos picos e vales do humor."

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10 de ago. de 2014

Hermitage

Eu escrevo sobre tudo, mas ainda não tinha escrito sobre você. Talvez por você ter toda a erudição que sonhei ter, pelos textos e poesias que deixava com nosso café pelas manhãs. Talvez por ainda ter questões pendentes desde que você encerrou as atividades do meu Banco Sacul S/A e o despejou do guarda-roupa de sua casa, aos meus oito anos, quando, com todas as resoluções de um menino dessa idade, decidi que não queria mais te ver e dei um mosh na vida. Mãe, Du, Cecília (minha professora da 4ª série), Tuto, Tio Domenico, Carlão e outros tantos braços que me carregaram no alto até eu descer nos 18 anos, quando você me procurou.

Era bem diferente de tudo que eu lembrava e imaginava. Adolescente clichê, chutei portas e tentei botar pra fora toda a raiva acumulada. Você se desculpou, explicou, aguentou, insistiu. Até que, no ano mais difícil da minha vida, me carregou no colo sem fazer muitas perguntas, deixando claro que me entendia, aceitava e permitindo que eu fizesse da sua casa em SP um bunker onde me escondi inúmeras vezes.

Nesse tempo, você fazia janta e deixava bilhetes pela manhã, ao sair pro trabalho. Ah, os bilhetes pela manhã! Escrevia longos e-mails pra mim, ouvia minhas baboseiras, criou coragem pra me dar a primeira bronca. Do fundo do meu poço, entendi minha solidão – o eremita que herdei de você – e, em vez de dividi-la, deixei que me ajudasse a sair dela e fizesse companhia. Você segurou uma barra imensa e voltei a te chamar de pai em meus pensamentos.

Abaixei a guarda e ganhamos o mundo. Rimos alto quando você foi trapaceado por uma pimenta disfarçada na Cidade do México. Bebemos vodka nas noites de sol infinito do verão russo. Vi uma alegria infantil nos seus olhos azuis, sempre camuflados pelos óculos, e seus pés balançando quando pode pilotar uma lancha pela primeira vez na vida, ladeado por ilhas cheias de vinhedos.

Fomos ao show do Eric Clapton, seu primeiro show em estádio. Ao Paul McCartney. Vimos juntos Bruce Springsteen cantar Thunder Road nos meus 30 anos. Gosto de ver você batendo tímidas palmas e levantando os pés, no que não caracteriza um pulo, quando está curtindo um show. E não seguro um sorriso emocionado quando você transcende e pula na pista ao som de Jump, do Van Halen.

Conversamos muito sobre a vó e família. Du e eu vivemos tantas coisas com ela, como netos, e é bonito poder unir com suas lembranças de filho. Eu gosto da sua história, até das partes em que troca os pés pelas mãos.

Foi por sua história torta que acabei destituído do meu posto de caçula para ganhar uma irmã mais nova, entender isso tudo e me emocionar ao vê-la de noiva e casando.

Jantamos juntos, ficamos trilili tomando vinho, que você tanto gosta e eu faço graça ao avaliar aromas, falamos sobre a vida e rimos. Gosto quando faço você rir com minhas besteiras.

Hoje estamos todos indo para a casa do Duda, eu como tio e padrinho, você como avô babão de gêmeas, para comemorar o primeiro dia dos pais dele. Vamos cozinhar!

Você está em duas das minhas tatuagens. Está no meu coração. Eu não escrevi sobre você até hoje porque esperei a hora e a coragem de dizer pra todo mundo o quanto eu te amo.

Feliz dia dos pais.  =)


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Um pouco do pai, para o pai

(...) Viajamos nós quatro, ou com avós e tios, rimos juntos e vivemos uma festa. Que grande infância pudemos ter graças a isso. Mesmo quando as noites na chácara tornavam-se um breu de escuras, com as constantes quedas de energia que havia, ele nos levava para o quarto dele com a mãe, acendia um abajur, e lia capítulos de livros que jamais esquecemos: Tarzan, a Ilha do Tesouro e Origens (com um fóssil na capa!) foram acompanhados como novela, um capítulo atrás do outro, noite após a outra... Não à toa a leitura estar entranhada nos seus filhos!

(...) O Rui pai voltou com sua timidez, seu sorriso por detrás de um par de óculos. Seus olhos azuis traziam a companhia de cabelos grisalhos. Mas era o Rui pai, disposto a voltar a sê-lo. Nenhuma história de separação é completa se não flertar com a história da volta, da reconciliação, do perdão. Mútuo e definitivo. Perdoar não significa esquecer, mas lembrar para que não mais ocorra e, com isso, renovar as chances de erro mutuamente. Dar a chance para incontáveis acertos e poucos e novos erros. Perdoamo-nos, construímo-nos de novo. E isso foi muito legal.

(...) Mas, acima de tudo, sonhamos e desejamos ver se iluminar o quarto do menino que você tem dentro de si e que ele possa mirar seus próprios olhos azuis no espelho de seu coração e sorrir, sem medo de mais nada: você é um grande pai, o melhor que poderíamos ter.