1 de jul. de 2020

Sobre sermos todos seres humanos

Quando eu era mais novo as pessoas eram mais homogêneas. Não porque o mundo era mais legal ou as coisas eram melhores, mas porque somos pasteurizados. Nossas individualidades são podadas desde cedo, o diferente é excluído. Por isso, a gente cresce aprendendo a ser a beirada. Aprendendo a mimetizar o que é socialmente aceito para driblar os preconceitos. Meninos não podem pentear a boneca. Poxa, isso talvez não gerasse meninos que penteassem suas namoradas com carinho, que aprendessem a demonstrar o amor aos amigos afagando, não batendo? Que entendessem melhor o corpo da mulher? Que respeitassem? As meninas não podem brincar com ferramentas, quando poderiam se divertir mais e abrir caminhos, inclusive profissionais. Não podemos todos jogar futebol juntos?

Somos segregados desde a mais tenra idade, quando ainda estamos abertos para o mundo. Meninos e meninas. Rosa e azul. Do mais alto pro mais baixo. Dos que foram melhor em matemática pros que foram pior. Futebol para eles e vôlei para elas. Saias e shorts. Tênis e sapatilhas. Esse só pode casar com aquela. E assim seguimos, sufocados e silenciados.

Depois disso sofremos demais para entender o que acontece dentro da gente. Para aprendermos a nos aceitar, a nos amar. Daí vem o hábito de soltar as mãos quando vemos um conhecido se aproximando ou quando estamos em mar aberto, não em algum porto seguro. É um reflexo de sobrevivência, pois o nosso redor é tormenta. A gente amealha amigos pelo caminho para compor uma família que nos ampara, aceita, abraça e fortalece. Que nos ama, no meio da trilha de rejeição.

O mais correto talvez não seja seja dizer que a gente cresce, mas sim que a maior parte de nós sobrevive. Sobrevive a um ódio à toa. Ninguém deveria ser obrigado a viver marginal ao amor, a sobreviver a uma raiva descabida. A gente engole o choro e se cobre com uma armadura de arco-íris. A gente apanha e cai. E ouve que certamente apanhou por algum motivo, por ter feito algo. Sim, por ser quem e como sou e não entender porque isso gera tanta recusa em algumas pessoas. Mas, por toda essa vida, a gente aprende a levantar com a cabeça mais erguida e a voz mais alta.

Eu era beirada até acordar da dolorida realidade das calçadas, mesmo em minha bolha de privilégios e padrões. Era festa ao meu redor e me foi imposta uma concussão. E foi o que precisei para elevar minha voz. E para o amor transbordar por essas feridas. Para que eu use o que tenho ao meu alcance para fomentar a mudança e para fortalecer essa causa e as causas com as quais dialogo.

Encerramos ontem o Mês do Orgulho LGBTQIA+ e começamos hoje um novo mês em que não seremos mais beirada, ao longo do qual vamos nos orgulhar ainda mais. Nós somos todos os meses, todos os dias, todas as horas. Do nascer ao pôr do sol. Somos o mundo, somos uma explosão de cores, somos amor. E que abram caminho, porque também somos os cabelos das bonecas e as partidas de futebol, únicos em nossas semelhanças, imensos em nossas singularidades.

Eu sou grato a todos que cruzaram minha vida e me trouxeram até aqui, que são minha família e me possibilitaram ser quem sou. Meu irmão, minha mãe, o Carlão, a Bete, o Dr. Lauro, Gabriel, André Lucas, Vinny, Victor, Johnny, Pomba, Fe Fontes, Mayara, Lemp, Caio, Aline, meu pai, Karen, Raquel, Malu, Rod, Rafa Cescon, Pedro. Obrigado! Eu tenho muito orgulho. De mim, da gente. 

Como disse a atriz Dominique Jackson, “somos todos seres humanos. Trata-se de inclusão e nunca pedirei respeito a nenhum de vocês. Eu demando. Você não vai me dizer que me aceita. Você não vai dizer que me tolera. Você não tem esse poder. Você vai me respeitar por quem eu sou”.

É sobre o amor. E sobre não calar. 🌈

10 de abr. de 2020

Hoje eu quero ser...

...uma ampulheta, para fazer o passar parecer lúdico e só revelar o fim ao deslizar do último grão de areia pela goela de vidro, quando já não há mais tempo.

...uma agulha, para juntar partes, ajudar a tirar farpas, cutucar e causar dor.

...uma Coca-Coca de máquina, um pouco aguada, bem gelada, descendo por uma garganta áspera.

...um relógio, para poder parar de trabalhar sem muitas conseqüências, mas achar que, assim, tenho o poder de controlar as horas e dominar o mundo.

...uma roupa extravagante atravessando uma passarela, sustentada por um corpo esquálido iluminado por flashes.

...um apagão aéreo, para deixar pessoas ilhadas em outros países e testar os limites do ser humano.

...um bobo apaixonado, com tudo a que tenho direito.

...um balão meteorológico, para voar alto e longe e ouvir: "É OVNI!".

...uma bunda, daquelas bem redondas, que parecem ter sido desenhadas com compasso, para ser admirada depois da passagem por cabeças que torcem pescoços.

...o estepe de um carro, para ficar esquecido a maior parte do tempo e virar protagonista nas horas mais chatas.

...o movimento de rotação da Terra, para inverter minha lógica de funcionamento e fazer o dia virar noite.

...um milho de pipoca, que em pouco tempo muda de cor, forma e sabor, mas mantém a essência.

...uma garrafa de vinho vazia ao lado de um grupo sorridente de pessoas ruborizadas, que discutem coisas bobas como se fossem o que de mais importante há no mundo.

...um clássico do cinema europeu, no qual o tempo passa arrastado em preto e branco, com ótima trilha sonora, numa coleção menos acessada que a dos blockbusters e séries.

...uma roda-gigante, com luzes super coloridas, para girar o dia inteiro e nunca ficar zonzo. E vez ou outra flagrar um jovem casalzinho apaixonado.

...um pingüim, para ser uma ave que nada, protagonizar filmes e anda como se estivesse com as calças no tornozelo.

...um bicho preguiça, para passar o dia grudado numa árvore com cara de sono.

...um perfume doce para, em um esbarrão numa calçada, sair grudado em um corpo anônimo.

...uma batedeira, para misturar coisas rapidamente e sem medo.

...o tapete azul do meu banheiro, que não liga para fios de cabelo caídos e os pisões úmidos.

...uma pausa de mil compassos.