29 de out. de 2018

Super far

Não consigo definir a sensação de entrar em minha casa e parecer a primeira vez. Ter que reocupar os espaços e redecorar a memória. Mesmo após mais de uma década por aqui, são sensações tão novas, desconhecidas, intensas e desenfreadas que quebram a porteira, derramam. É estranho acompanhar as coisas sumindo aos poucos, assim como no filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”. Assim como sua risada rouca foi esmaecendo nos últimos tempos. Uma dolorida amnésia consciente.

A oposição entre as partes vazias dos armários, onde antes estavam suas coisas, com alguns objetos que ainda coabitam aquelas paredes é similar ao que se passa dentro de mim. Tento disfarçar, tento recuperar uma rotina antiga, mas não tem adiantado muito.

Sei que ainda vou, por um tempo, me pegar pensando se você está coberto ao dormir. Se vou encontrar um fio dental no ralo do box do banheiro. Se vai gostar da janta, quais seriam os planos para um fim de semana a dois. Não vou mais ter que esperar o cochilo para mudar o canal da TV, saber se você está em casa ou não pelas duas voltas da chave da porta. São coisas tão bobas, mas que se avolumam num tanto! As manhãs, agora, são silêncio sem os imaginários programas de TV na cozinha.

As luzinhas, por todos os cantos da casa, vão passar um tempo apagadas, até que tudo isso irá, aos poucos, arar a terra para que brotem novos planos. As músicas, que usualmente parecem sempre tão bobas, ainda mais para quem vive no dial das notícias, passam a fazer todo o sentido. Parecem plantadas em momentos específicos para nos fazer titubear.

Nos conhecemos à beira do furacão e encaramos o olho como uma calmaria perene. Até que a outra margem do vendaval passou, levando tudo. Eu teimei em não te encaixotar ao primeiro alerta e desdobrei meu coração, que havia guardado no bolso. Foi bom, pois com você eu aprendi que o amor pode ter uma deliciosa rotina. O cachorrinho e eu ainda ficamos olhando para a porta, pensando se algo poderia ter sido diferente. Escolhas e caminhos.

As fases da vida têm seus ritos de passagem. Talvez seja realmente o percurso a fazer a história, não a linha de chegada. Mas a dificuldade em mudar o caminho, em entender o caminhar, é de todo ser humano. A inércia talvez seja, além da física, inerente à nossa inexplicável existência emocional. Ainda que tenhamos caminhado lado a lado, nunca estivemos pisando a mesma terra.

Estou falando demais, né? Armando Antenore escreveu que "há despedidas que não encontram tradução. O que falar diante de um amigo que se muda para bem longe, um amor que morre, um projeto querido que se interrompe? Às vezes, o melhor - o mais preciso e eloquente - é dar adeus em silêncio." Mas eu nunca soube lidar direito com o silêncio.

Shiu! Consegue ouvir? O som de um coração espatifando? “Como cristal em um mundo de vidro”. Como uma sinfonia de infinitos silêncios, até que as cortinas se abaixem, as palmas cessem, a plateia seja trocada. Agora temos nossas vidas espatifadas em diversas telas. Logo mais teremos um quebra-cabeça, uma obra de arte em exibição no Memory Motel, um novo espetáculo.

Das berries eu farei um bolo. Afinal, da dupla, sempre fui o carboidrato.









“The idea that we are so capable of love, but still choose to be toxic.”
Rupi Kaur

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