3 de out. de 2022

A gente, a democracia

Declaração Universal dos Direitos Humanos, por Ruth Rocha e Otávio Roth 

As memórias tandem a ficar meio embaralhadas ao longo dos anos. Fico incerto com relação a lugares e coloco pessoas queridas em lembranças de acontecimentos e situações nas quais elas, na vida real/factual, não estavam.  

No encerramento do domingo do primeiro turno das eleições de 2022 lembrei de minha mãe, no idos de 1980, comigo e com meu irmão no banco traseiro de um Volkswagen, um Voyage branco, se não me engano, buzinando e gritando pelas ruas de Sorocaba, onde nasci, e de São Paulo, a capital do Estado, uma hora longe de onde passei a infância, em tempos de busca pelo direito de votar em eleições diretas e de escolher um governo democrático. 

Nessas viagens de carro minha mãe buzinava e gritava a plenos pulmões e com paixão. Eu não entendia muito bem, mas entrava no clima e entoava também as palavras que reforçavam seu coro. Eu não entendia bem pois minha vida foi cercada de privilégios, mas minha mãe gritava como uma menina que trabalhou desde muito nova, uma mulher que lutava por seus direitos e queria ter sua voz ouvida. Que carregava no banco do passageiro décadas de machismo, patriarcado, meritocracia e repressão. 

Minha mãe morava na mesma cidade e era quase da mesma idade de Alexandre Vannucchi Leme, estudante de Geologia da Universidade de São Paulo, primeiro colocado no vestibular, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), preso, torturado e morto durante a ditadura militar. 

Mandei um áudio para ela quando o Lula não venceu no primeiro turno, triste e choroso, perguntando sobre esses tempos em que ela nos levava para ver que o mundo precisa que nos posicionemos, com o vento das janelas abertas em nossos rostos, ao que ela me respondeu: “Era época das ‘Diretas já’, a gente queria poder votar em eleições diretas, vocês eram pequenininhos e iam com a mamãe”. 

Hoje, adulto, parte da população LGBTQIA+, eu entendo um pouco mais aquelas viagens de carro com essa mulher tão imensa que é minha mãe, que sempre colocou à frente de suas vontades o direito “da gente”, que sempre pensou no coletivo e fez o possível para passar esse olhar pro meu irmão e pra mim. 

Estamos, agora, buzinando e gritando pela democracia, por nossos direitos, por nossa vida, carregando no banco do passageiro o medo de termos por mais quatro anos um pária social na presidência, dando margem para essa insanidade e agressividade que vivemos nos últimos tempos. “A gente não pode desanimar, precisa ter esperança. Vocês ainda são jovens e podem lutar muito mais do que a mamãe. É a democracia, a gente precisa preservá-la. Você vai sempre ter a sua mãe lutando ao seu lado pelo que ela acredita que é certo, e quero que você e seu irmão também lutem”. É pela gente, mãe, e obrigado por ter me ensinado isso.